A “onça” Niède Guidon

Filha de pai francês e mãe brasileira, Niède Guidon nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 12 de março de 1933. Por isso, tem dupla nacionalidade. 

Na infância, gostava de subir em árvores e de brincar na rua. E não levava desaforo para casa – não tinha medo de partir para a briga! 

Todo mundo dizia que ela devia ser médica, pois a menina gostava de abrir suas bonecas para entender como funcionavam. Ela até fez vestibular para medicina, mas não passou. Mas entrou para o curso de História Natural, na USP, e se apaixonou por estudar geologia, a terra, os animais e as plantas.

Um pé no futuro, outro no passado

Aos 18 anos, Niède destoava das jovens do seu tempo – era independente, morava sozinha, sabia dirigir e não tinha qualquer interesse nas roupas femininas da época. Preferia usar calças e tinha os cabelos curtos.

Ao se formar, em 1959, chegou a trabalhar como professora de ciências no interior de São Paulo, mas logo voltou para a capital. Assumiu uma vaga no Museu Paulista da USP, na área de arqueologia. Para se aprofundar mais no assunto, foi para a França fazer uma especialização em Arqueologia Pré-Histórica na Universidade Paris-Sorbonne, concluída em 1962.

Em 1963, já de volta ao Museu Paulista, recebeu visitantes do Piauí que apreciavam uma exposição sobre a arte rupestre do sítio arqueológico de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Eles comentaram que, de onde vinham, também havia “esses rabiscos de índio”. O interesse de Niède foi imediatamente fisgado. Anotou o nome da cidade: São Raimundo Nonato.

Exílio

Em 1964, já depois do golpe militar, Niède recebeu um telefonema – era sua tia, que a alertava de que ela havia sido denunciada como comunista e que deveria sair do País imediatamente. A arqueologista queria ficar para provar que não era membro do partido, mas a tia a aconselhou a não esperar para ver. Assim, de um dia para o outro, voltou para a França.

Ali ela integrou o Centro Nacional de Pesquisa Científica ou CNRS, na sigla em francês, e entrou para a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Tornou-se assistente da arqueóloga francesa Annete Emperaire. 

Serra da Capivara, mon amour

Em 1970, Niède veio ao Brasil acompanhando uma amiga cientista em visita a uma aldeia indígena no norte de Goiás (onde hoje é Tocantins). De lá, as duas estenderam a viagem até São Raimundo Nonato/PI. Foi o primeiro contato da arqueóloga com os tais “rabiscos de índio” – uma coleção fascinante de pinturas rupestres espalhadas por dezenas de sítios arqueológicos em uma região conhecida como Serra da Capivara. Foi amor à primeira vista – e para a vida toda.

Encantada com a natureza local e a riqueza arqueológica da Serra da Capivara, Niède tanto fez que convenceu o CNRS a organizar uma expedição para lá. Em 1973, veio em missão com as pesquisadoras Silvia Maranca e Luciana Pallestrini. Passaram três meses ali, registrando novos sítios arqueológicos com o apoio de mateiros, a quem pagavam um dinheiro por cada novo local descoberto.

Mais tarde, em 1978, a missão arqueológica francesa na Serra da Capivara tornou-se permanente. Niède voltou lá nesse mesmo ano, e o encanto pelo lugar só aumentou. Mas, quanto mais ela amava, mais temia que tudo aquilo deixasse de existir, caso não fosse protegido. Foi atrás de autoridades, preparou relatórios e palestras. Seu esforço resultou na criação do Parque Nacional Serra da Capivara, em 5 de junho de 1979.

Polêmicas e brigas

De todos os sítios arqueológicos, o da Pedra Furada ocupava um lugar especial no coração da cientista. Bem ali, perto de um paredão repleto de pinturas rupestres, foram coletados vestígios antigos de fogueira no início da década de 1980. Como no Brasil ainda não havia laboratórios para fazer a datação de artefatos arqueológicos, eles foram enviados a um laboratório na França. Surpresa – os vestígios datavam de mais de 18 mil anos atrás!

E, assim, Niède acabaria entrando numa das maiores polêmicas da comunidade científica. Até então, a teoria mais aceita de como se deu o povoamento das Américas era de que os grupamentos humanos haviam chegado a pé há cerca de 13 mil anos, vindos da Ásia pelo Estreito de Bhering (perto de onde hoje fica o Alasca). Quem era Niède para afirmar que o homem havia chegado muito antes disso na Serra da Capivara?

As divergências entre os arqueólogos continuam até hoje, mas ganhar essa briga nunca foi interesse de Niède. Sua grande luta sempre foi pela preservação do Parque Nacional Serra da Capivara. Para cuidar de sua gestão, em 1986, ela criou a Fundação Museu do Homem Americano (Fundham), da qual é presidente emérita até hoje. O empenho dela também foi fundamental para que o parque fosse tombado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1991.

A morada definitiva 

Depois de tantos anos indo e vindo da França, Niède se aposentou e se mudou definitivamente para São Raimundo Nonato em 1992. Ali, cercou-se de uma equipe quase toda feminina e local para cuidar do Parque – desde as guaritas até os cargos de chefia. E por que tantas mulheres? Ela afirma que foi circunstancial. As funcionárias eram mais comprometidas com o trabalho, com o que sustentavam suas famílias. Já os homens iam e vinham. O empoderamento feminino não foi seu objetivo, mas a consequência. Sua ideia sempre foi promover o desenvolvimento da região. 

Enérgica, teimosa, mandona – “uma onça”, como dizem os amigos -, ela seguiu enfrentando com coragem todas as dificuldades para cuidar daquele local tão especial. Mas, em 2017, encontrou seu pior adversário: o mosquito Aedes aegypti. Pegou zika e chikungunya e ficou com artrose, uma doença degenerativa que causa muita dor nas articulações. Precisou deixar os trabalhos de campo e as caminhadas pelo amado parque. 

Hoje Niède mora em uma casinha perto dos centros de pesquisa do Parque Nacional, acompanhada de seus animais de estimação. Não casou nem teve filhos. Mas deixou um legado valioso – que perdurará tantos anos quanto as pinturas da Serra da Capivara.

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