Cultura quilombola no prato e na sala de aula

O que esperar de uma escola sem recursos financeiros e com problemas estruturais tão graves que as aulas precisavam ser suspensas quando chovia? Nada mais, nada menos do que o primeiro lugar no Ideb 2019 em seu município, nos Jogos Escolares Municipais 2019 e também a conquista do Prêmio Nestlé por Crianças Mais Saudáveis 2020. O segredo? Trabalho em equipe e a incrível liderança da educadora Lívia Oliveira.

Na hora de se apresentar, ela faz questão de destacar sua identidade e ancestralidade. “Sou mulher preta, quilombola, mãe, professora, pedagoga, poetisa, filha de pescador e atual gestora do Centro Educacional Municipal Prof. Ana Judite de Araújo Melo, que fica na Comunidade Remanescente de Quilombo de São Braz, em Santo Amaro (BA)”, resume a educadora, que atua na comunidade há quase 20 anos.

Quando assumiu a gestão da escola há dois anos, Lívia se deparou com uma situação crítica. Além do telhado danificado e da falta de espaço para os estudantes realizarem refeições juntos, ela não podia usar a verba do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) devido a questões burocráticas relacionadas à troca de gestão. Mesmo assim, os obstáculos foram superados, com apoio da Secretaria Municipal de Educação e, especialmente, dos profissionais que atuam no centro educacional.

Trabalho em equipe

“Ninguém faz educação sozinho, educação é parceria. É muito fácil trabalhar em equipe quando cada um desenvolve seu trabalho com coerência e responsabilidade. Na escola Ana Judite, todos são importantes, desde o porteiro ao gestor. Tem funcionário que acreditou tanto na nossa gestão que fazia mais do que sua função, como o vigia Altair, que me ajudava na cópia das provas, grampeava, instalava tomadas, consertava portões e tudo que fosse necessário. Não posso deixar de falar das professoras do EJA 1 (Educação de Jovens e Adultos), que supriam com recursos próprios algumas necessidades de seus estudantes”, relembra Lívia.

Esse movimento inspirou os estudantes, que assumiram uma nova postura na escola. “Elevamos a autoestima deles. Todos os dias, falávamos do quanto eles eram capazes, que São Braz não era o limite e que eles precisavam acreditar nisso. Acreditaram tanto que deram à nossa escola o maior Ideb do município de Santo Amaro”, orgulha-se a gestora. A nota do Centro Educacional Municipal Professora Ana Judite de Araújo Melo no ensino fundamental 2 saltou de 2,9, em 2017, para 4,3 na avaliação de 2019.

Herança cultural na mesa

A escola também se orgulha de ter tido um projeto escolhido entre os 300 apresentados no Prêmio Nestlé por Crianças mais Saudáveis. “O projeto foi escrito pela professora de Religião Ivana Patrícia Bispo e tem como tema Preservando a herança cultural e costumes de nossa gente, alimentamos corpo e mente. O objetivo principal é a reformulação do cardápio escolar, a construção da horta comunitária e de um novo refeitório”, detalha Lívia Oliveira.

O projeto se baseia na valorização da cultura local quilombola, inserindo pratos regionais típicos no cardápio, e oferecendo oficinas de pesca, mariscagem, defumação de camarão e cultivo de roça, ministrados pela comunidade e pelos pais. Além da produção que vai alimentar os estudantes, a horta comunitária servirá de laboratório nas aulas de ciência e oficinas de cultivo. Mesmo com as escolas fechadas devido à pandemia do coronavírus, os projetos vencedores receberam apoio pedagógico e financeiro de R$ 35 mil cada um, para finalizar as obras a tempo da retomada das aulas.

A escola também estimula o resgate e valorização da herança cultural não só nas aulas de História e Cultura Afrobrasileira, conduzidas pelo professor Evilásio. “Exploramos temas como o samba chula, a capoeira e outros voltados à nossa cultura quilombola em todos os contextos: aulas, datas comemorativas, desfiles, passamos filmes, fazemos debates no turno oposto. E a nossa abordagem é feita da forma mais cuidadosa possível, pois na escola temos alunos de várias religiões, que precisam ser respeitadas”, observa.

Pandemia e aulas online

A pandemia paralisou alguns planos, como a formação de grupos culturais na escola para os estudantes darem continuidade à cultura quilombola. As aulas têm sido virtuais, com atividades enviadas pelo Whatsapp e devolução presencial a cada 15 dias, com todos os cuidados necessários – cada turma em seu horário e todos de máscaras. “Enquanto isso, nosso prédio escolar descansa vazio, sem o corre-corre dos estudantes e sem Lívia e Aline (coordenadora) atrás deles”, lamenta a gestora.

Ainda assim, a valorização da herança cultural não sai de cena. Nas aulas de Artes, os estudantes estão trabalhando símbolos Adinkra (um dos sistemas de escrita africanos) para a logomarca do projeto premiado. Em seguida, eles irão se dedicar a conteúdos para o TikTok, aliando conhecimentos ancestrais com as tecnologias que não param de surgir.

E mesmo com as escolas fechadas devido à pandemia do coronavírus, o projeto premiado recebeu apoio pedagógico e financeiro de R$ 35 mil, para finalizar as obras a tempo da retomada das aulas.

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