A rainha Elza Soares

A vida de Elza Soares é tão intensa, com tantos episódios dolorosos e tanta superação que não parece caber nos 91 anos que a cantora viveu. Elza foi muitas, mesmo – detestava rótulos e se reinventou muitas e muitas vezes.

Nascida Elza Gomes da Conceição em uma família numerosa, era filha de um operário e de uma lavadeira. Moravam onde hoje é a comunidade de Vila Vintém, na zona oeste da capital fluminense.

Desde pequena, adorava cantar e brincar livremente. Mas teve a infância interrompida aos 13 anos, quando foi obrigada a se casar com um colega de trabalho do pai, um rapaz mais velho chamado Lourdes Antônio Soares, mais conhecido como Alaordes. Aos 14, foi mãe pela primeira vez. 

Elza nunca teve medo de trabalho. Para complementar a pouca renda da família, trabalhou como empregada doméstica e em uma fábrica de sabão. Em 1953, num dia de desespero, com um filho doente em casa, decidiu se arriscar e competir em um concurso de calouros no programa de rádio de um grande comunicador da época, Ary Barroso. Seu objetivo: ganhar o grande prêmio do dia para conseguir comprar remédios.

Planeta Fome

A apresentação de Elza no programa de rádio “Calouros em Desfile” é um dos momentos mais icônicos da vida da cantora. Magrinha, miudinha, Elza entrou no auditório da Rádio Tupi com roupas emprestadas da mãe, muito folgadas para ela, ajustadas ao corpo com alfinetes de segurança. As sandálias gastas e o cabelo preso em duas maria-chiquinhas completavam o visual da moça pobre, mas determinada. 

Ao ver entrar aquela figura de aparência desmazelada, o apresentador Ary Barroso perguntou, cheio de ironia: “me responda, menina, de que planeta você veio?” – “Do seu planeta, seu Ary.” -“Posso perguntar que planeta é esse?” – “Do planeta fome.”

Aquela foi a primeira vez que Elza silenciava apresentador e plateia. A segunda vez foi quando soltou o vozeirão e cantou “Lama”. Ao final do número, Ary Barroso anunciou: “Senhoras e senhores, nasce uma estrela”. O público explodiu em aplausos. E Elza, claro, ganhou o primeiro lugar.

Dura na queda

Elza sobreviveu a muita dor na vida. Do primeiro marido, perdeu dois filhos ainda bebês. Gerson, o quarto filho, foi dado em adoção aos padrinhos porque a família não conseguia alimentar mais uma boca. Aos 29 anos, ficou viúva, com três filhos para criar. 

Não bastasse a resistência da família, que não via com bons olhos a profissão de cantora, no início da carreira, Elza sofreu com o racismo, sendo impedida de gravar discos e de subir aos palcos em diversas ocasiões. Isso não a segurou – pelo contrário, só a tornou mais valente. No início da década de 1960, já era um enorme sucesso.

Nessa época, também, se envolveu com o craque da Seleção Brasileira de Futebol, Mané Garrincha, que ainda era casado. A partir daí, foi alvo do ódio de fãs do jogador. Por ser uma ‘destruidora de lares’, foi perseguida, ameaçada e até mesmo agredida. A carreira, é claro, sofreu com isso – os convites para novos trabalhos minguaram. 

Garrincha foi o grande amor de sua vida. Ao seu lado, Elza foi feliz como nunca. E infeliz, também. Juntos, eles tiveram dois filhos: Sara, adotada ainda bebê, e Juninho. Mas o alcoolismo de Mané acabou por destruir o relacionamento. Em 1982, se separaram. No ano seguinte, o ex-jogador morreu de cirrose hepática, uma doença no fígado. O golpe mais doloroso viria três anos depois: a morte de Juninho em um acidente de carro.

Em julho de 2015, já com mais de 80 anos, Elza reviveu a dor de perder um filho, com o falecimento de Gilson, o filho caçula do primeiro casamento.

Se o coração não teve sossego, o corpo de Elza também passou por muitos apuros. Além das muitas agressões físicas sofridas nos dois casamentos, ela passou por dois acidentes de carro, em que perdeu vários dentes; caiu do alto de um palco, machucando gravemente a coluna; teve diverticulite aguda e precisou ser operada (durante a recuperação, já em casa, viu os pontos se soltarem e as próprias entranhas saírem, precisando de uma cirurgia reparadora de 12 horas de duração).

Elza pede passagem

Embora tenha alcançado o estrelato cantando sambas, Elza sabia que podia mais. Apesar disso, por muito tempo as gravadoras só a viam como a ‘rainha do samba’. Demorou, mas a partir do final do século XX, ela pôde mostrar todo o seu talento em diferentes estilos – do samba-rock ao rap, da bossa ao jazz, da música eletrônica à MPB.

Emprestou sua voz a temas como o racismo, a violência contra a mulher, a transexualidade, a dependência de drogas, o envelhecimento e a morte.

Virou enredo de escolas de samba, livros e documentários. Recebeu incontáveis prêmios e homenagens. Em 1999, foi eleita pela Rádio BBC de Londres como a cantora brasileira do milênio. 

Em 20 de janeiro de 2023, aos 91 anos, Elza Soares faleceu de causas naturais. Mas seu exemplo de coragem, determinação e resiliência serão para sempre lembrados. Assim como a sua voz.

Sobre as informações deste texto

Muito já se escreveu sobre Elza Soares. Talvez por isso haja tanta informação desencontrada sobre a sua vida. Há quem diga que ela foi forçada a se casar aos 12 anos. Outros afirmam que foi aos 13. E como o primeiro marido era chamado – Alaordes ou Alaúrdes? Até a data de nascimento é controversa – 23 de junho ou 22 de julho? De 1930 ou de 1937? 

Para conseguirmos contar essa história, optamos por eleger uma fonte principal de dados: a biografia “Elza”, escrita pelo jornalista Zeca Camargo.

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